story:tell:her

28.3.13

endoença

Muito a propósito do tríduo pascal, cozi peixe com batatas. Temo, porém, que se nos acabe aqui a contrição.
Depois da quaresma, a paixão. Contudo, na memória das oliveiras passadas, há um ano que me desequilibra os pecados do mundo. Tragicamente, nunca mais aleluia.


f:és

Ocorreu-me que o amor a um deus desatento pode ser como o de um amante desiludido.
Uma pessoa ama outra. A outra não cumpre. Isto não desvaloriza o amor da primeira, a qual poderá sempre elevar-se no consolo da sua verdade. Tal como o crente não atendido na sua fé.
Pior, o outro revela-se uma alforreca ou o deus um opressor.
O amor, essa dádiva extraordinária para quem o sente, escapará incólume? Tal como a beata que se mancha continuamente de parafina, poderá o amante reincidir naquele sorriso autista (beato, cá está) mesmo que magoado (já a parafina, queima pouco)?
Na verdade, o que temos para dar não se mede pelo que disso é recebido. Isso seria tremendamente injusto para o dador. Afinal, a compatibilidade de medulas, sabe-se, é muito baixa.

conta:dor

O Julian Barnes, que na altura em que fala daquilo tudo ainda não tinha nada a temer, acabou por sentir a morte muito pouco tempo depois. E a morte é sempre uma surpresa. Pat, a mulher de J, morreu subitamente alguns meses após a publicação do romance.
J quis morrer também. Segura-o a memória dela, deles. É ele o fiel depositário de todas as coisas suas, deles, daquilo que mais ninguém conhece, por mais livros que ele escreva e alguém leia. O amor também é isto, guardar bocadinhos de vida em gavetas próprias, um arrumário precioso embutido na pele, no cabelo, nos ossos.

26.3.13

ti:o:cidade

Com isto da Grândola, lembrei-me da tiocidade, esse sentimento libertário que eu acreditava ser a mensagem da revolução.
Neste caso, a maturidade linguística trouxe-me um verdadeiro pesar. Afinal estávamos todos dentro de uma fronteira urbanística e não daquele abraço camarada.
Assim como assim, fiquei titular de um conceito só meu. Com a liberdade de Abril, a solidariedade de Maio e a prudência da idade adulta, tiocido hoje com uma sobriedade quase asceta.


fora de época

Pus-me a fazer uma cataplana de tamboril.
Na verdade, é todo um esforço evocativo, para contrariar a chuva e o desconsolo. Até vesti um avental. A minha filha adora ver-me de avental. Na cozinha. A cozinhar. Ou isso sou eu?
Eu gosto de cataplanas. É uma palavra maravilhosa. Cheira a verão e a mar. É um utensílio robusto, gregário, amesendado.
Estava tão distraída a fatiar o pimento que me enganei na metade de cima e de baixo. Amorosamente, refiz as camadas e ateei-lhe o gás natural.
Nas cataplanas, como nas famílias, vai tudo em cru.

performance

Entrou quando eu já lá estava há tempo suficiente para precisar de mudar de assento.
Reconheci-o logo.
Há uns anos, ficaram-me aquelas lágrimas gravadas em technicolor. O guião era terrivelmente exagerado. Pediam-lhe que chorasse. Nós víamos aquilo tudo a acontecer, num ecrã, durante mais de 10 minutos. Um homem crescido, em grande plano, a chorar em frente a uma câmara. Embaraça-me, ainda, o pudor que senti à medida que o tempo passava.
Estava a mexer-se com facilidade, devia ser um exame de rotina.
Eu soltei-me do abraço desconfortável do sofá e sentei-me numa cadeira.
Nunca o vi em palco, só ali, à espera da tomografia, sem contraste.

164

Não conseguia tirar os olhos do rapaz.
Incomodava-me a canícula na veia, embora me tivessem garantido que já não estava lá a agulha. Se ao menos eu pudesse continuar no cadeirão.
Primeiro foi a surpresa, depois dei por mim a sorrir, estranhamente acompanhada. A memória a escorrer e a desprender-me os músculos. Isso e o anti-inflamatório.
Estava lá a acompanhar um pé partido. Tinha um livro de fotografia, mas estava obviamente indisponível para imagéticas. Mexia-se pouco. Eu também me mexia pouco, apesar de já saber que não havia agulha nenhuma.
Vá que já lá não estava o 166, uma pulseira amarela sibilante. Toda a sala se suspendia em cada inspiração. O rapaz já não se cruzou com o darth vader da infante santo.
O pé partido entretanto tinha-se levantado da cadeira de rodas para fumar um cigarro lá fora. Um lázaro da passa.
Era toda a metade superior da cabeça. O cabelo, a testa, o olhar. Mais baixo.
Encontrar as nossas pessoas assim, no fenótipo de estranhos, é muito perturbador.



25.3.13

p:ills

Ando mesmerizada com a minha prescrição.
Duas vezes ao dia, liberto os comprimidos da tablete e junto-os com a ponta do indicador direito.
Gosto de ver as cores a contrastar com a pedra preta do balcão. Diverte-me a minha condição de paciente contrariada.
Encho meio copo de água.
Há, portanto, uma comicidade instalada na minha fruteira koziol: bananas, tangerinas e caixas de comprimidos. Uma pessoa sabe que perdeu mão na vida quando assume a presença dos medicamentos nos balcões da cozinha.
Eu não tenho nada de grave.

24.3.13

intra:venous

Seis horas de ambulatório deixaram-me exausta de personagens e enredo. Não há como a triagem profissional para nos capitular in the big co:urse of events.

Es:tampa

A estampa estava ao baixo no banco do jardim. Travada por quadros sujos e uma estatueta africana. Já tinha um rasgão do vento e das obras.
Eu não gosto do neorrealismo, mas gosto do neorrealismo. Eram dois homens, largos, claro. Dois homens de feições duras, claro. 
Segui.
No meio das obras e do vento, voltei a procurá-los. Para confirmar que não gosto do neorrealismo e que não queria dois homens largos e duros pregados no meu estuque recuperado. Uns gaibéus com quase um metro de altura a fitar-me os florões do tecto.
Procurei o capataz do meu desassossego, esperando, claramente, um homem largo. Respondeu-me, desinteressado, que eram 50 euros. Não olhou para mim, não pegou na estampa. Disse que estava rasgada. Estava rasgada. Foi o vento e a falta de cuidado. Rasgou pelo topo da improvisada prensa colonial.
Eu nem aprecio o neorrealismo. 
Uma pessoa vai às feiras porque quem vende gosta tanto das coisas como quem compra. Porque as peças passam de mão num contínuo de respeito. 
E eu respeito muito o neorrealismo. Tenho de ir a Vila Franca.

Mr. Write

Tipo:graficamente, a única font:e adequada para as histórias de amor é a serifada.

Manifesto ba:house

Uma pessoa com doze metros de corre:dor tem muita oportunidade para questionar as escolhas. É toda uma via de por:maiores palmilhados quotidianamente.

Fragmentos

Gosto de espelhos pequenos. Tenho um espelho pequeno, com uma moldura de madeira, respigado numa banca, com um arame enrolado que o faz tombar para a frente.
Gosto de espelhos ligeiramente tombados. Justificam uma pessoa ligeiramente torta.
Os espelhos pequenos alinham-nos o objectivo com o chão da casa e as rajadas da luz. Vê-se uma quadrícula e imagina-se o resto da matriz.
A minha filha, pequena, não chegava ao meu espelho pequeno e via-se sempre aos saltos. As sobrancelhas levantadas na expectativa, um meio sorriso esperançado, esforçado, promitente. Toda uma infância ir:reflectida com terna nitidez.

Coup:le

Numa moldura pequena, estão dois pés pespontados num lençol. Um instantâneo de uma peça da Lourdes Castro, uma memória de algodão, doce. Um ex-voto ao amor.

A:teia

Eu, des:crente, trouxe hoje da feira um Santo António.
Preguei-o num esquadria de centros com o Espírito Santo e o meio ponto de lã florida.
Depois do registo - um octógono de galões vintage com um laço amarelo, mais uma peça sacra - este caramelo de barro vidrado assinado pela neta Ramalho.
Ocorre-me que há ainda o retábulo no outro canto - uma prancha escalavrada, onde uma mão pia se esgueira de um manto à vista dos anjinhos, com um 18 vincado a carvão (não fosse um dia alguém querer reconstruir aquele altar de caruncho).
Portanto, três bocados de idolatria, crucificados com pregos de latão dourado nas paredes do meu quarto.
Na falta de epifanias, posso sempre embalar-me na fé dos outros.