story:tell:her

20.4.06

Piromania

Confirma-se. Atravessei o espelho. Saí e deixei-me ficar lá sozinha. Vista de fora pareço eu, mas eu sei que estou vazia porque me pirei. Estou pirada. Ela já aprendeu o meu nome. A mamã chama-se Ana M... Gosto de a ouvir dizer-me. Eu, que ainda estranho o nome completo dela.
Há três anos que estou cansada. Estou sempre cansada. Agora até já durmo noites inteiras, agora até já não me levanto de noite. É verdade que acordo à bombeiro, sempre em emergência, em sirene. Sempre em falta. Estou sempre em falta. Vivo de crédito. Compro vidinha a juros, abato prestações, mas continuo hipotecada. Estou hipotecada para a vida com a filha dos meus sonhos, com a vida dos meus sonhos. Conheço outras como eu, encontro outras como eu.
Olho para mim e percebo que o cabelo não está com bom corte, que devia por creme nas mãos e nos olhos. Estou franzida nas fotografias. Percebo que não tenho boa cara quando me perguntam se estou doente. Doente? Não... Quer dizer, tenho uma tosse, mas nada de especial e sim, doem-me umas partes, mas já não me lembro de não ter algum incómodo, de ser cómoda. Vivo incomodada e já não penso nisso. Incomodam-me os prazos, as escolhas constantes, as pedagogias de almanaque, os ralhetes, as burocracias, os calendários. Listas e calendários, a vida agenda-se e os compromissos parecem pulgas, a saltar. Atiro a bola para a frente. Atiro-me para a frente.