story:tell:her

12.10.05

Depois é que vai sendo

Agora que me apercebi da verdade, que a partilhei com amigos, que espreitei os bastidores da parentalidade, da vida adulta, agora já sei que é assim. Quero dizer, que a vidinha é assim. Não é o que vai ser ou o que poderia ter sido, é assim, vai sendo. Como concordava ontem uma voz amiga ao telefone, rouca e tússica como a minha, "a vida é isto; não vale a pena estar sempre a dizer depois é que vai ser". Vou só ali tirar um curso e depois é que vai ser, vou viver uns anos ali e depois é que vai ser, vou ter um filho e depois das fraldas é que vai ser. Não, vai sendo, por isso mais vale aproveitar as coisas boas todas, quando aparecem, e não ficar à espera delas para dias maiores, mais calmos e decansados, mais iguais aos outros dias todos.
Como tão bem disse a Cat, os putos são todos iguais. Uns comem, outros dormem, uns choram até aos 2 meses, aos 2 anos, aos 20 anos, todos têm diarreias e vomitam e babam a roupa das mães e puxam pelos braços (principalmente se a mãe estiver num computador) e pedem colo (às vezes já matreiros, na reinação, quando a mãe está a fazer xixi), têm ranhos e às vezes piolhos. Em todas as casas há cotão e louça suja e roupa amachucada e armários desarrumados e contas. Toda a gente devia comer mais peixe e mais legumes e menos bolos. Não há mães insolúveis quando ainda não são oito e está a chover tanto que ainda não me secaram as calças. Toda a gente chega atrasada de vez em quando e muitas pessoas deixam cair bolos de arroz nas escadas do metro. Muitas pessoas têm vergonha de se assoar nos transportes públicos, sabendo que ninguém gosta de ouvir entupimentos e imaginar secreções esverdeadas, quanto mais tirá-las de si com elegância e discrição.
Não, as noites nunca mais vão ser inteiras e descansadas porque depois das constipações e dos pesadelos e dos xixis vão chegar as discotecas e as borbulhas e os namorados. Depois de já saberem tomar banho sozinhos vão deixar de querer tomar banho. A vida não vai ser depois de nada em particular, vai sendo com todas as coisas no geral. Com festinhas na cara da mãe enquanto se apertam os sapatos, com papas recusadas, cuspidas, empurradas e bolos de arroz perdidos em escadas e encontrados outra vez em qualquer pastelaria, uma especialidade da casa.