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6.5.06

Jacintos

Hoje cruzei-me com a tutela nos livros usados do Chiado. Reconheci foi a voz, que eu estava semicerrada de calor. Tinha umas coisas para lhe dizer, mas não me apeteceu gerir o acaso com tanto sol. Aposto que quando for velhinho vai fazer listas em folhinhas de bloco, com minúcia e fato completo, como o senhor que ocupava o canto em frente da minha tarte de chocolate. Papelinhos escritos com cuidado e analisados mil vezes com a dignidade de quem ainda usa colete. Apeteceu-me apresentá-lo (o velhinho, não a tutela) ao volume cor-de-rosa que levou as sandálias-bota de cabedal preto. Um rendilhado extraordinário que passava o joelho e a postura, já de si comprometida com o batôn rebuçado. Eu chequei uns trainers desmarcados por 24,95 e aquele poço de confiança britânica ensacou umas férias de luxúria inolvidável. Shame on me.
O que eu gosto do Chiado.
No outro dia cruzei-me com o Jacinto, um exemplar perfeito do rapaz que sempre me despertou, assim rasteiro e de camisola cinzenta, uma mistura de FCUL e FCSH de meados de 90. Tive poucos namorados, todos muito diferentes, mas nenhum seria homem para usar uma camisa cor-de-rosa, por exemplo. Há uns anos consegui convencer o meu marido que mostrar os dedos dos pés não é gay. Que as sandálias são uma necessidade de país quente. E acredito que, ainda hoje, o G. prefira arder a destapar a base.
Nunca dei a mão a umas alças, cavas ou justezas de tronco, os óculos são para proteger os olhos e não para estilizar o rosto, as malas seguram-se com a mão ou mochilam-se. Ainda bem que eu tenho uma filha.
Aposto que o Jacinto fala baixo. O meu marido fala tão baixo que já sujei a roupa a debruçar-me sobre a mesa. Estou treinadíssima no tirar umas por outras. Sabe Deus os equívocos que coleccionei estes anos todos.
Pat, quase que me esquecia de te contar que ontem esbarrei naquele lá da FCUL, acho que lhe chamava Francisco, como sempre. Lembras-te? Aquele da Física, do C1, com quem nunca falei. Está um bocado gordo e um bocado careca. De resto igual. Apeteceu-me pará-lo e dizer-lhe olá, com 15 anos de atraso. Que disparate.