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26.1.05

A vidinha

No tempo da faculdade tivémos que ensinar ao único rapaz do núcleo duro a fazer "aiaiaiaiaiaiaiaiai" com as miúdas, ou seja a queixar-se. As queixas são uma válvula de segurança que ajuda a aliviar a pressão. Queixar é bom, eu queixo-me imenso e não quero que racionalizem a minha queixa. Quero solidariedade e não uma desconstrução objectiva que só serve para me fazer sentir pior e ainda por cima irritada. Quero "aiaiaiaiaiaiai, eu também" de volta.

Já não me lembro se sempre foi assim, mas eu agora queixo-me mesmo muito. Todos me devem e ninguém me paga. O meu cabelo está mais desorientado que nunca, de manhã saio sempre de casa fugitiva para evitar lágrimas ao piolho. Não faço uma única refeição completa sentada, sem resgatar comida dos cantos onde ela depois a vai recuperar, mastigando alegremente bagos de arroz ressequidos, não tenho tempo para tirar os pêlos das pernas com a frequência regulamentar (isto dos pêlos ainda há-de merecer um post autónomo), uso champô 2 em 1 o que é uma porcaria, a onda sonora de choro da Mariana chega sempre primeiro aos meus ouvidos do que aos do pai, o chão novo da cozinha é preto, que é muito giro mas ainda mais desesperante do que o branco, passo a vida a desculpar-me pelo que não faço e às vezes também pelo que faço, nunca consigo estar sozinha, logo eu que me dou tão bem comigo, tomo sempre banho com um olho na piolha e outro na piolha, pelo que desconfio que não ando muito bem lavada. Aliás, tenho sempre uma nódoa algures e a minha filha também.

Gosto muito de me queixar com outras mamãs e leio sempre a mãe Rita e a mãe Francisca. Ainda tenho à mão a mãe Ana S e o pai Tiago, para ajudar a perspectivar a vidinha. Sou uma sortuda. Tenho pai, mãe, filha, marido, mais do que "um amigo em cada mão e agora um jardim para regar". Não devia "ligar a coisas de nada, fazer da vida enchada, a cavar em pedra dura".