story:tell:her

31.3.14

história clínica com prognóstico reservado


Desde sempre que vigio os marcos da estrada. Prefiro os de pedra, claro, resguardados entre os arbustos da beira do caminho. Costumava registá-los, cuidadosamente, no banco de trás da hierarquia familiar, quando viajar não era um volante ou um gps, quando era só olhar para fora e, livremente, reparar nos marcos do caminho.
Nas autoestradas não há rotas esculpidas, há rectângulos azuis, modernos, competentes, assertivos; algarismos brancos sem dúvidas. Ao quilómetro 234. Ao quilómetro 365. Ao quilómetro quase sempre com três dígitos, que é quando acontecem mais coisas, toda a gente sabe.
Mas não reparei no quilómetro. Imperdoavelmente, não faço ideia de qual foi o quilómetro.
Nos autos da posteridade não poderei relatar, confiadamente, quando o sujeito sofreu embate violento e inesperado, com ruptura aguda da parede livre ventricular e putativa perda de função.
Não poderei distinguir, na incerteza do quilómetro, o antes e o pós perfuração.
Nisto das verdades ponta e mola há pouca memória dos detalhes.